O rapaz estava cansado. Não lembrava a última vez que tinha deitado numa cama confortável. Quando abriu a porta de casa, voltando da viagem em que vinha conhecendo vários lugares maravilhosos, não pôde pensar em outra coisa além de um banho e um bom descanso numa cama de verdade. Seus pais não estavam em casa, mas ele tinha as chaves que haviam pertencido à sua irmã antes dela casar. Há muito ele não via a fámília e os amigos com os quais havia crescido. Na manhã seguinte iria passar todo o seu tempo visitando os mais chegados e botando o papo em dia. Entrou no banheiro e tomou um banho demorado. Foi até a cozinha, preparou algo para comer, pegou seu diskman e colocou o CD do Pixies que comprara numa loja esquecida no fundo de uma galeria quando voltava para casa. Desligou a luz do quarto e com o volume no máximo foi até o armário para guardar um dinheiro que havia economizado no cofre que seus pais haviam colocado lá. Ele não ouviu quando abriram a porta da sala e perguntaram assustados quem estava lá; nem quando empurrando a porta do quarto seu pai lhe deu dois tiros nas costas lhe deixando estirado no carpete, sangrando. O pai, que não via o filho desde o início do ano que passara, não pôde fazer nada além de chorar enquanto colocava o revólver na boca e puxava o gatilho com uma dor enorme em seu coração. No CD terminava a música DEAD...
Your world is an ashtray, we burn and coil like cigarretes; the more you cry your ashes turn to mud.
Ele havia começado o dia mal. Tropeçou na cama quando levantou, deu uma topada na geladeira, derramou o leite no fogão, manchou a camisa do trabalho, aumentou a mancha ao tentar limpar, quando chegou ao portão teve de voltar para pegar a chave que havia esquecido. Saiu impaciente pensando no que falaria ao patrão quando chegasse atrasado pela terceira vez na semana. Mal chegou no ponto de ônibus e um taxista apressado passou por uma poça d´água que para alívio dos transeuntes não era grande o suficiente para molhar mais que um deles. Foi logo fazendo sinal para o ônibus, lotado, que se aproximava moroso. Pagou a passagem, o trocador não tinha troco, se acomodou ao lado de um gordo que suava feito louco só pra esperar até que pudesse recuperar seu raríssimo dinheiro, que é claro, viria na forma de vales transporte. Não estava preocupado com o que viria. Já havia se acostumado com a maré de azar que o perseguia implacavelmente. Estava com fome, pois não havia tido tempo de tomar café; dormir tarde não é bom negócio. Ele teria visto um bom filme na noite passada se a luz não houvesse acabado no minuto final. Com toda a certeza não tinha sorte mesmo. Com trinta e cinco anos não havia se casado. Não por não ter tentado algumas vezes, mas porque não tinha sorte nem mesmo com as mulheres. Como dizem que quem não tem sorte no jogo a consegue no amor, achou que a recíproca poderia ser verdadeira e resolveu jogar na loteria. Pegou um cartão, na última semana, foi até a mesinha no canto escuro da lotérica e tomou para si uma dessas canetas que ficam amarradas no balcão para não serem levadas por cleptomaníacos, fez seu jogo com dificuldade. A caneta falhava muito e não havia outra. Foi decidido até o caixa e pagou o bilhete. Agora, no ônibus ele se lembrara do jogo quando guardava o troco que estava esperando. O bilhete todo esfarelado que a empregada havia deixado na calça sem conferir antes de jogá-la na máquina de lavar. Pegou o bilhete, abriu com cuidado para que não se desintegrasse. Pegou o jornal em sua pasta e foi conferir o jogo. 05, 07, 29, 31, 34 e 42. Seu coração disparou sua bochecha ficou vermelha uma dor lhe correu o peito e ele caiu morto sem ao menos notar a linda moça que o observava desde que entrara no ônibus e agora perdia todas as esperanças de casar com o homem que havia esperado por toda a vida.
Your world is an ashtray, we burn and coil like cigarretes; the more you cry your ashes turn to mud.